Este artigo, de minha autoria, foi originalmente publicado no Jornal de Guimarães a 27 de Dezembro de 2022.
Gosto de vinho do Porto. Perdoem-me os inadimplentes deste contrato - património da humanidade - entre o labor, o mosto e o copo de origem duriense. Aprecio-o, invariavelmente ao crepúsculo, na “sede administrativa”, sob olhar de Garrett, no freudiano Palácio das Cardosas, já que de fronte esventrado por um metro sub-reptício sem clímax à vista, na já citada cidade do Porto que, entre outras, faz o favor de acolher os meus préstimos laborais. Por lá me atende um espadaúdo jovem nórdico preocupado com os snacks quando o deleite de "Minh, alma" é mesmo o licor dionisíaco que D. Antónia soube aguentar. O esconso, pela clássica música envolvente, dá vagar à leitura e à "foto-socialização”, exercício importado denodadamente do meu eterno tio José Reis. E eis que contemplo, qual telepatia literária, já que me debruçava na “Felicidade Negada” de Domenico de Masi, em dois casais, com iguais trejeitos, cada um em sua vez - hispânicos, é importante a referência não pela elevada literacia britânica com que se dirigiam ao "lindo menino" para satisfazer as suas solicitações, antes, para expressar a minha admiração pelo confinamento linguístico e altamente audível com que somos presenteados sempre que o castelhano é idioma maioritário - compenetrados no que a minha querida amiga Assucena Sousa, em configurações Marcusianas, designaria de "ambivalência da técnica " , i.e., numa invólucra felicidade circunstancial de relação com o telemóvel, ignorando o seu "amor adquirido" prostrado na almofada seguinte, em igual postura. O italiano do livro, apontava para a tal "infelicidade", democrática e tolerantemente aceite, numa cognoscível ausência de libido da sociedade pós-industrial. Pareceu-me, embora não dispusesse de dados ulteriores, afinal, as Cardosas metamorfosearam-se num hotel! Mas a margem de erro seria curta, dado o afundanço desinteressado recortado no sofá que os corpos dos utentes desenharam. Em suma, uma compassiva alienação tutoreada pelos administradores tecnológicos. Eu, analogicamente vertido nas páginas que não me deixavam só, entre o panorama e a viagem que me esperava de regresso à Mátria, pensei logo nela, enquanto comunidade: estaremos como aqueles hispânicos? Isentos de fervor linguístico, de autenticidade, preocupados com a forma que julgamos dominar ao invés do conteúdo humano que, julgo, merecemos? A resposta veremos quando a isso formos chamados. E como, já parece adquirido, não haverá comboios para ver passar, aguardemos algum sobressalto que não seja a escolha entre o "alecrim e a manjerona". O brilhozinho nos olhos – não sei se esférico do Ronaldo, se salgado de Pessoa – talvez seja de Godinho, que, de tanta história parece saber a tanto, ora sabe a pouco! Feliz Ano Novo!
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