Um dos livros que me fascinou pela compreensão que fui buscando pela antropologia, cultura e religiosidade muçulmana foi exatamente este, Considerações sobre a desgraça árabe, de Samir Kassir.
Numa época em que muitos falam em “invansão árabe” perpetrada por grupos radicais que querem fazer volver uma “nova intifada” a ocidente, usando como meios a força e há até quem defenda – imagine-se! – que os próprios migrantes que chegam à Europa, pareceu-me pertinente tirar do baú esta peça literária e deixar uma reflexão, em jeito de reminiscência histórica, capaz de termos um ponto de partida mais sereno para um debate construtivo, tolerante e ecuménico, religiosa e politicamente falando.
Bem sabido que a leitura do livro ajudará decisivamente a entrar no raciocínio que desenvolverei, porque nele pegarei para buscar um fio condutor daquelas que considero as principais transformações político culturais na civilização árabe, na sub capa da matriz religiosa “daquele povo”. Muito resumidamente - como é óbvio – tanto mais num espaço destes; ainda assim, talvez dos textos mais longos.
O afastamento “pós – cruzadas” do mundo ocidental (eminentemente cristão) e o árabe, embora com uma significativa transformação quanto à sua reorganização e posicionamento político, foi sobretudo mais de delimitação geográfica. A vizinhança perdurou e a difusão cultural biunívoca permaneceu, na língua, na arquitetura e nos próprios usos e costumes mais comuns como a culinária. Se nos lembrarmos de palavras como Algarve, ou a magnífica Catedral de Córdoba percebemos o cunho que nos deixaram e que subsequentemente alimentaram nas rotas comerciais partilhadas com o oriente.
Mas o primeiro grande impacto que suscitou transformações naquela civilização (com toda a carga que tem a palavra civilização) foi a “revolução” cartesiana trazida pela modernidade. E esta, claramente com contradições que o livro de mote, bem o faz inferir.
Convém talvez dizer em primeira instância que ocorreram um conjunto de transformações – que dispenso de enunciar por estarem perfeitamente presentes na obra citada - de ordem política, social, cultural, geográfica e religiosa, às quais não devemos por si só chamar-lhe “desgraça”! Aliás os “olhos” serenos de um debate construtivo não tecem considerações – sob pena de um erro científico grave e etnocêntrico – sobre as “virtudes” ou “desgraças” de um dado povo, de uma dada comunidade. Devemos pois partir deste pressuposto – não só porque propus passar pela delicada linha da Religião mas também porque quis dar um ponto de vista Antropológico (com todas as óbvias limitações dimensionais) – que é aliás também enunciado por Samir Kassir em várias passagens da obra, procurando contextualizar as transformações operadas pelas interacções do mundo árabe na Europa e também a Oriente. Tanto mais que essas interacções, para a dita “cultura dominante” – talvez daí se insista tanto na expressão “desgraça árabe” – passam eventualmente por isso, ou seja, por tentar perceber os motivos pelos quais uma certa hegemonia cultural no seu todo, predominante e central do ponto de vista da mobilização humana e da sua representação religiosa e civilizacional, soçobrou, num dado momento histórico, ante a alternativa do “velho mundo” cristalizada por um certo pendor bélico, expansionista e de cariz cristão.
Sendo mais direto penso que o ponto-chave das reais transformações, que eclodiram à época e naquilo que, ainda hoje, podemos identificar como marca cultural contemporânea do mundo árabe – foi a revolução industrial a ocidente que acaba por coincidir com a progressiva queda do Império Otomano. Estas ocorrências acabam por marcar uma nova era nas relações ocidente/mundo árabe. O domínio das rotas comerciais perpetrada pelos portugueses no renascimento ganhou ênfase superior – na modernidade - quando o ocidente pretendeu “globalizar” o escoamento dos seus produtos fazendo-os passar também por territórios árabes. Aliás esta conflituosidade por domínio territorial, tendo origens históricas antepassadas, não mais cessou até aos nossos dias. De facto, os territórios que identificamos com a cultura árabe têm sido alvo das mais diversas acções diplomáticas e militares, não só por via do religioso e sagrado – se nos referirmos ao médio – oriente – mas sobretudo por razões económicas e de domínio de rotas comerciais: canal do Suez, petróleo etc. Torna-se por conseguinte evidente que há um marco nesta viragem “para dentro” do povo árabe. Em primeiro lugar por questões de auto – determinação política; depois por protecção territorial; por fim em ordem, que não em importância por liberdade religiosa. Se quisermos exemplificar os casos da Argélia, da Palestina e até mesmo do Egipto no não-alinhamento, mais tarde, são referências desta tentativa de protecção cultural pelo interior. É exactamente aqui que está – na minha modesta opinião – o ponto nevrálgico da questão. É que a religião desempenhou um papel fundamental nesta viragem para a protecção cultural interior que o povo árabe e as suas elites se propuseram fazer. Foi, em meu entender, o verdadeiro sustentáculo para que o povo árabe enquanto marca cultural, forçosa para a compreensão da humanidade no seu todo, não desaparecesse. Essa resistência que teve os seus pilares na religião surge concomitantemente como algo contraditório. Se hipoteticamente fizéssemos um exercício comparativo dos tempos da Nahda para os que se lhe seguiram em termos de organização política e religiosa, compreenderíamos que o rasgo intelectual provocado por um mundo livre, não deixa de trazer reflexos no que poderia eventualmente ter sucedido se a opção das elites árabes transitasse para modelos de organização política assentes em bases do parlamentarismo liberal. Essa opção, posta em segundo plano para solidificar posições resistentes na base de uma identidade religiosa que ganhou relevo, desaguou em estados de origem teocrática que em muitos casos – pelo seu isolamento intelectual – não foram capazes de interpretar o rumo que emergiu do pulsar social que se foi evidenciando em vários países e o clamor da democracia solidamente reclamado e materializado na recente primavera árabe. E é aqui que reside – em meu entender – o que foi a “salvação cultural”, por um lado e o “travão” por outro: a religião. Defensora das raízes culturais do povo quando o impacto da Modernidade e subsequentes desencadeamentos operados tiveram efeito na sua idiossincrasia; conservadora face aos evidentes sinais que se deram em prol de uma transformação de costumes, todavia impotentes para resistir ao advento da já mencionada primavera árabe. Sendo que esta dicotomia terá tendências a evoluir num sentido de definição de caminho, esperemos, para bem do seu povo e da humanidade, que seja em breve; uma vez que há uma massa grande de radicais no terreno, mas há um verdadeiro “mar de gente” que aspira manter a sua matriz cultural liberta de jugos de poder, em territórios de paz e prosperidade. Pensou-se aliás que a Turquia – quem tem vindo a marcar passo - seria o modelo ideal da preservação cultural e religiosa (sem teocraticismos políticos) daquele povo e que dela partisse o exemplo para os vizinhos próximos numa integração em franca harmonia com o respeito dos diferentes espíritos civilizacionais, em todo caso humanistas, entre o ocidente e o mundo árabe. Demorando esta solução – que comportava um exemplo de paz e humanização – ter-se-á que buscar novas e ponderadas soluções diplomáticas naquelas geografias, sem esquecer estes pressupostos históricos fundamentais, sob pena de mais desastres políticos de que a Síria é só o exemplo mais mediático.
Entretanto há uma grande massa de migrantes que traz estampado no rosto e no brilho dos olhos a esperança de prosseguir, “contra ninguém”, o seu caminho cultural de mãos dadas connosco.
Saiba pois a Europa no seu bom e velho espírito fundador desta União, preservar o seu valor fundamental: o Humanismo. Acolhendo-os!
Bem Vistas as Coisas, a cultura árabe é de um “iniciatismo” fundamental para a compreensão do Homem. Devemos pois buscar, perceber e integra-la no património antropológico de todos nós, sob pena de darmos espaço à barbárie radical de extremistas, militar o religiosos, sem contemplações com a diferença.